Ruídos de passos



Clarice Lispector

‘Tinha oitenta e um anos de idade. Chama-se dona Cândida Raposo.

Essa senhora tinha a vertigem de viver. A vertigem se acentuava quando ia passar dias numa fazenda: a altitude, o verde das árvores, a chuva, tudo isso a piorava. Quando ouvia Liszt se arrepiava toda. Fora linda na juventude. E tinha vergonha quando cheirava profundamente uma rosa.

Pois foi com dona Cândida Raposo que o desejo de prazer não passava.

Teve enfim a grande coragem de ir a um ginecologista.

E perguntou-lhe envergonhada, de cabeça baixa:

- Quando é que passa?

- Passa o quê, minha senhora?

- A coisa.

- Que coisa?

- A coisa, repetiu. O desejo de prazer, disse enfim.

- Minha senhora, lamento lhe dizer que não passa nunca.

Olhou-o espantada.

- Mas eu tenho oitenta e um anos de idade!

- Não importa, minha senhora. É até o morrer.

- Mas isso é o inferno!

- É a vida, senhora Raposo.

A vida era isso, então? Essa falta de vergonha?

- E o que é que eu faço? Ninguém me quer mais...

O médico olhou-a com piedade.

- Não há remédio, minha senhora.

- E se eu pagasse?

Não ia adiantar de nada. A senhora tem que se lembrar que tem oitenta e um anos de idade.

- E... e se eu me arranjasse sozinha? O senhor entende o que eu quero dizer?

- É, disse o médico. Pode ser um remédio.

Então saiu do consultório. A filha esperava-a embaixo, de carro. Um filho Cândido perdera na guerra, era um pracinha. Tinha essa intolerável dor no coração: a de sobreviver a um ser adorado.

Nessa mesma noite deu um jeito e solitariamente satisfez-se. Mudos fogos de artifícios. Depois chorou. Tinha vergonha. Daí em diante usaria o mesmo processo. Sempre triste. É a vida, senhora Raposo, é a vida. Até a bênção da morte.

A morte.

Parece-lhe ouvir o ruído de passos. Os passos de seu marido Antenor Raposo. ’

O texto demonstra uma mulher idosa com seus desejos sexuais. Como reação à repressão e aos preconceitos sócio-culturais, ela coloca-se como doente diante da necessidade de prazer.

Ao ir ao médico, Dona Cândida solicita permissão para realizar um ato carregado de extremo preconceito social - a masturbação. Após a “autorização”, seus atos masturbatórios visam satisfazer o que chamou de “desejo de prazer”. Afirmando esta questão Werlang (1989) termina dizendo: “A senhora de oitenta e um anos substituiu, assim, a autoridade da sociedade pela autoridade do médico, que obtém ou representa o poder nas questões do corpo.”

Diante da obra de Clarice Lispector, verifica-se que a manifestação da sexualidade não termina com a idade. Sendo assim, o ser humano não deve continuar acreditando que o desejo e a necessidade da manifestação sexual na Terceira Idade sejam atribuídos a questões diabólicas ou que seja um comportamento negativo em suas vidas, como era visto na Idade Média. E nem como diz Rieman (1995), que para algumas pessoas “o desejo pode ser um presente de grego.”

A necessidade de uma reflexão acerca das limitações impostas aos idosos foi salientada por Vasconcelos (1994ª) quando afirmou que:

“A vergonha de ser velho, embora patrocinada pela cultura, parece-me repousar fundamentalmente em uma ignorância existencial. Chamo de ignorância existencial ao fato de os indivíduos não aprenderem, não estarem atentos ao que neles mesmos se passa e pode se passar, de não exercerem sua curiosidade de mundo em si mesmo, em todas as fases da existência. Sem curiosidade não há saber, há decoração de papéis e de lições preparadas de antemão, como é o caso da sexualidade, de uma maneira geral”.

Esta citação faz-me lembrar de uma experiência ocorrida, ao iniciar o projeto de informação sobre sexualidade para o grupo de Terceira Idade na UNATI/UERJ. O projeto, constava de 4 (quatro) unidades, voltadas para as mudanças que ocorriam na sexualidade durante o processo do envelhecimento. Na segunda semana de aulas, uma aluna de 67 anos, representando a turma, como conta Risman (1995), fez-me a seguinte observação:

“Professor, quando éramos crianças, fomos reprimidas por nossos pais. Depois casamos e tivemos filhos e assim vivemos a nossa sexualidade de acordo com o que aprendemos com os nossos maridos. Agora, com os filhos criados e casados, temos a oportunidade de descobrir, conhecer, conversar e questionar os vários assuntos que por tantos anos foram impedidos de aprender, pela educação e formação reprimida que tivemos. Então, por gentileza, nos fale sobre todos os assuntos que englobem a questão da sexualidade e não só os fatores de mudanças na nossa idade.”

A necessidade de informação mais abrangente fez-se presente, e, a partir deste momento, as quatro unidades transformaram-se em nove unidades, sendo o curso, antes programado para um semestre, ampliado para dois semestres.

Muitas pessoas, pela formação reprimida que tiveram, possuem uma dificuldade em falar sobre sexo, dificultando muitas vezes, o esclarecimento de suas dificuldades nesta área.

É comum que uma pessoa aos 70 anos coma menos que um jovem. A pessoa sabe que isso pode acontecer, mas não é por isso que fica achando que vai morrer. Porém, com relação ao sexo, as preocupações são maiores, ou seja, se o desejo ou outro fator estiver se modificando, é porque vai acabar aí o sujeito entra em desespero. Por este motivo, é necessário frisar que: “a função sexual existe até a morte e apenas será diferente em cada época da vida” .

É importante salientar que estas diferenças podem acentuar-se, se o idoso estiver utilizando algum tipo de medicação, ou por estar com alguma doença. Neste caso é provável que diminua o desempenho sexual em momentos de crise de seu estado patológico. Se a saúde estiver boa, no entanto, nada impedirá que o indivíduo mantenha a sua atividade sexual.

Doenças físicas como, por exemplo, diabetes, artrite, problemas cardiológicos, hipertensão, entre outros, são verdadeiros fantasmas que assolam a sexualidade do ser humano. Entretanto, os problemas físicos dos indivíduos, quando bem controlados e com medicações adequadas, permitirão aos mesmos continuarem com suas atividades sexuais sem muitos problemas.

Na verdade, mesmo ocorrendo mudanças nas áreas sociais, política e médica, o preconceito em relação à atividade sexual precisa ser discutido e analisado visando uma melhor explicação e orientação das verdadeiras mudanças existentes no comportamento sexual do idoso, para que este grupo possa não se sentir culpado pelos seus desejos sexuais, independentemente da forma de sua manifestação.


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